A CABALA DA INVEJA

Quando tive a grata oportunidade de participar, com Nilton Bonder, de uma sessão de leitura bilíngüe de trechos do Eclesiastes (Qohélet), por ocasião do lançamento no Rio de Janeiro de minha "transcriação" desse extraordinário "Poema Sapiencial", surpreendeu-me a disponibilidade do jovem rabino de compartilhar comigo um momento de celebração laica, já que, no que a mim dizia respeito, o objeto por excelência a celebrar-se, naquele momento, era a força poética da palavra bíblica, - do davar hebraico, vocábulo e coisa ao mesmo tempo, e que, nesse sentido, supera as circunscrições do logos grego. É que ao Rabino Bonder, afigura-se-me, importa fundamentalmente a "outridade", a instância do outro, a relação dialógica, e, nesse nível, ele parece ter a nostalgia, a "saudade" (Sehllsucht) buberiana do TU, instaurador dessa relação onde o EU encontra seu devir (Ich wurde am Du / No Tu eu me torno Eu). Assim, a "outridade" (a otredad de Octavio Paz, dimensão tão essencial à poesia como à experiência de nossa humanidade em seu sentido mais profundo) é o grande tema que subjaz a esta Cabala da Inveja, terceiro volume da série que já nos deu A Cabala da Comida e A Cabala do Dinheiro.

Devemos considerar "a condição iterativa do mundo e dos mundos" escreve Nilton Bonder, ao meditar sobre uma passagem polifacetada do sábio setecentista Reb Pinchas de Koretz, resumindo-a, para o leitor de hoje, nestas palavras: "Para podermos modificar uma atitude para com o outro, devemos entender que há um outro em nós e um nós no outro. Se conseguirmos trabalhar e crescer como indivíduos, não só nós nos beneficiaremos, mas o outro em nós também. A visão ou a relação do outro em nós é engrandecida de tal forma que irá, certamente, refletir no elemento nós-no-outro, enriquecendo-o também. E o resultado final desse movimento é a transformação do outro no outro, ou de sua pessoa como a enxergamos." Configura-se, a esta altura, na exposição sedutora de Nilton Bonder, a emergência de uma aparição: advém o anjo da outridade. Em sintonia com esse anjo - ou com essa quadripartite "estrutura angelical" da exegese rabínica, quatro figuras mediadoras que, junto a nós (à frente, atrás, à direita, à esquerda), fazem as vezes de um " outro imaginário" - é que "estaremos numa posição onde é possível ouvir." Pois o anjo é um "emissário" (mal'aq) do diálogo; a mediação angélica, preservadora da "diferença" face ao absoluto, é que "nos retira da solidão sem permitir que percamos a nossa identidade. "

Este volume final da trilogia enfoca a inveja. A inveja como fenômeno animal", pertencente ao mesmo "nicho cósmico" da raiva/ódio (sin'á), em oposição ao amor. Encontro no Qohélet, IV, 4, num versículo que verbera o "...ciúme do homem contra o rival homem", a expressão de algo que fica nessa área semântica. O substantivo qin'á que traduzi por "ciúme", envolve os sentidos de "rivalidade, competição, inveja", supondo-se que deriva etimologicamente da "coloração produzida no rosto pela forte emoção" (interpretação que lhe daria o caráter de um verdadeiro pictograma da pulsão conflitual implícita no conceito). "Ao lidarmos com a inveja" - explica-nos Nilton Bonder, apoiando-se na tradição rabínica - "estamos explorando as fronteiras do ser humano." A essa manifestação negativa que é a inveja, opõe-se, como antônimo, o expressivo conceito de farguinen, que Nilton Bonder extrai da língua iídiche, com o significado de "compactuar com o prazer e a alegria do outro" (eu diria: "comprazer-se com o prazer alheio"), um sentimento que é difícil de obter sem a disciplina que nos educa para ele. E aqui vem um dos trechos mais fascinantes do livro: "Na verdade, o mundo utópico idealizado pelo messianismo, ou pela criação de uma era de entendimento, é constituído de indivíduos que vivem a sensação de farguinen com a mesma facilidade com que nós, em nosso mundo não redimido, experimentamos a inveja." O mundo messiânico do fim da história, o reino da "língua pura" (como diria Walter Benjamim) seria também, como decorre dessa miragem convivial, o mundo do comprazer na outridade.

Tudo isso, e muito mais, nos ensina este livro que, na secular tradição midrashista das parábolas, das micronarrativas aforismáticas, Nilton Bonder entreteceu para nosso comprazimento, e que ele nos convida a percorrer com a bela imagem do pomar de frutos, que são espelhos, e em cujos,revérberos nos reconhecemos sob a forma de reflexos. Comecemos, pois, esta jornada de cintilações.

Haroldo de Campos