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ENGENHEIRO E SURFISTA, O RABINO EXPLICA A POPULARIZAÇÃO
DO OCULTO Poucas vezes os segredos e mistérios foram tão visados. Que o digam o desempenho de vendas do livro O Código da Vinci, de Dan Brown, e o alvoroço em torno de sua versão para o cinema, que estréia nesta sexta-feira. A adesão de estrelas do show business à cabala, apenas reafirma a tendência. Mas Nilton Bonder, engenheiro mecânico formado pela Universidade Columbia, surfista nas horas vagas desde que se mudou para o Rio aos 6 anos de idade e há 20 anos rabino da tradição cabalística, joga água fria na fervura - ou melhor, reembrulha o oculto nas sombras da discrição. "O objetivo da cabala não é 'venha descobrir os segredos do oculto'. é 'venha descobrir o segredo de que existe o oculto, mas ele permanecerá oculto, você não terá domínio sobre ele", adverte o rabino de 47 anos. "O 'grande engano é achar que você vai descobrir os segredos, a mágica, os truques, quando na verdade vai simplesmente circundar o oculto." Sim, as mensagens nas entrelinhas caíram na boca do povo, mas
cabala não é para qualquer um, e mesmo suas versões
mais light demandam regras e cautelas. "Cabala significa 'receber',
era passada de mestre para discípulo como o topo do estudo. É
um trabalho de interpretação, a mais sofisticada e refinada
possível", diz Bonder, doutor em Literatura Hebraica pelo
Jewish Theological Seminary de Nova Y ork e líder espiritual da
Congregação Judaica do Brasil (CJB), na Barra da Tijuca,
zona sul do Rio. "Quando eu digo 'não é para todos',
dentro da estrutura tradicional judaica significava que você tinha
de ter antes cumprido um ciclo básico. Se eu quiser ensinar física
quântica, e você não fez antes Física 1, 2,
etc., fica fora de contexto." CABALALlGHT A extrema complexidade da cabala estimulou no próprio meio judaico o surgimento do hassidismo, uma tentativa de popularizá-Ia e torná-Ia mais genérica. Em seus cursos, baseados em textos hassídicos, Bonder trata, por exemplo, do conceito de alma: não é um corpo etéreo, mas o cordão umbilical entre a realidade (as circunstâncias) e a verdade (o que está além). "As pessoas têm um longing, uma saudade de alguma coisa que não sabem nem o que é, o que explica essa inquietação do nosso tempo." No final das contas, ressalta o rabino, o importante é que para a tradição mística judaica a maior desgraça que pode acontecer a uma pessoa é o ocultamento do oculto. "Uma pessoa que vive no ocultamento do oculto é aquela que pensa: eu nasço, vivo e morro, tenho de aproveitar a vida da melhor maneira possível, e é isso aí." DESCONSTRUINDO O REAL Mas a desconstrução pode ser irreversível, e o. mergulho no oculto, sem volta, admite o rabino. ''Você tem de ter alguma regra. Os rabinos diziam no passado que uma pessoa, para estudar a cabala, deveria ter 40 anos, pelo menos, e ser casada". Era a maneira que os antigos mestres dispunham em sua época para determinar que a pessoa teria uma certa maturidade, para não se deprimir. Além de lastro, é preciso âncora. "Na tradição judaica, é muito importante ter um texto canonizado, porque aquilo é um território", diz Bonder. É a interpretação com foco em um alvo fixo que vai garantir a profundidade. "Eu posso começar a interpretar qualquer coisa como um louco. O louco é o maior interpretador que existe, mas sem um território. Por isso ele é louco.': Uma das histórias fundadoras da cabala ilustra isso. Quatro sábios
entram em um pomar (pardes, em hebraico, a mesma palavra para "paraíso"). Além da técnica das quatro interpretações, há na cabala a conexão de palavras por seu valor numérico, já que no hebraico há uma correlação entre letras e números. "Eu posso descobrir que tal palavra tem o valor 34, e achar uma outra que tem o mesmo valor, e que acrescenta significado. Eu tive de desmontá-la e transformá-la em número para achar outra palavra que se relaciona com ela."
Bonder admite, porém, que há um certo modismo na adesão de ricos e famosos à cabala, como a cantora Madonna, por exemplo. "A busca das pessoas é bonita, obviamente que pode ser manipulada, e essa manipulação tá aí rolando muito. Todo estudo profundo é em direção à felicidade e prosperidade, mas você pode criar com isso uma propaganda enganosa."
Ainda segundo o rabino, quando Deus procura por Adão depois que o primeiro casal come o fruto proibido, não está procurando culpados, mas querendo se aproximar. "Enquanto você ficar no quem traiu, quem comeu o que não devia, há alguma coisa errada." Uma decorrência bastante palpável de toda essa reflexão
é que entender o mundo superficialmente pode contribuir, e muito,
para a sua destruição. COMUNIDADE |