ENGENHEIRO E SURFISTA, O RABINO EXPLICA A POPULARIZAÇÃO DO OCULTO
Especialista em Cabala, Nilton Bonder explica os fundamentos da tradição judaica de interpretação bíblica.
O ESTADO DE SÃO PAULO - CAD. VIDA& - RELIGIÃO - 14/05/2006
Ricardo Muniz

Poucas vezes os segredos e mistérios foram tão visados. Que o digam o desempenho de vendas do livro O Código da Vinci, de Dan Brown, e o alvoroço em torno de sua versão para o cinema, que estréia nesta sexta-feira. A adesão de estrelas do show business à cabala, apenas reafirma a tendência. Mas Nilton Bonder, engenheiro mecânico formado pela Universidade Columbia, surfista nas horas vagas desde que se mudou para o Rio aos 6 anos de idade e há 20 anos rabino da tradição cabalística, joga água fria na fervura - ou melhor, reembrulha o oculto nas sombras da discrição.

"O objetivo da cabala não é 'venha descobrir os segredos do oculto'. é 'venha descobrir o segredo de que existe o oculto, mas ele permanecerá oculto, você não terá domínio sobre ele", adverte o rabino de 47 anos. "O 'grande engano é achar que você vai descobrir os segredos, a mágica, os truques, quando na verdade vai simplesmente circundar o oculto."

Sim, as mensagens nas entrelinhas caíram na boca do povo, mas cabala não é para qualquer um, e mesmo suas versões mais light demandam regras e cautelas. "Cabala significa 'receber', era passada de mestre para discípulo como o topo do estudo. É um trabalho de interpretação, a mais sofisticada e refinada possível", diz Bonder, doutor em Literatura Hebraica pelo Jewish Theological Seminary de Nova Y ork e líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil (CJB), na Barra da Tijuca, zona sul do Rio. "Quando eu digo 'não é para todos', dentro da estrutura tradicional judaica significava que você tinha de ter antes cumprido um ciclo básico. Se eu quiser ensinar física quântica, e você não fez antes Física 1, 2, etc., fica fora de contexto."
Mas não é obrigatório carregar desde o berço uma sensibilidade espiritual especial. "A qualificação não é do tipo 'esse sujeito é um iluminado', mas, nessa estrutura da tradição judaica, é preciso que seja judeu, porque implica relação direta com o texto bíblico, não só literária, mas de cumprir o que está escrito."

CABALALlGHT
Isso não impede que a cabala (pronuncia-se "cabalá") seja apreciada, e cada vez mais, por gente de qualquer religião e origem. O próprio Bonder inicia, amanhã, no Centro de Cultura Judaica, no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, o curso As 10 Estações - A Cabalá e as Sefirot. Durante os meses de março e abril, ele já havia ministrado o curso Desconstruindo a realidade para cerca de 200 pessoas, no mesmo local. "Eu faço uso bastante light e amplo da cabala: ela é uma tentativa de ler alguma coisa no sentido mais profundo. Uso coisas muito concretas - comida, dinheiro, inveja - e aplico essa técnica de interpretação."

A extrema complexidade da cabala estimulou no próprio meio judaico o surgimento do hassidismo, uma tentativa de popularizá-Ia e torná-Ia mais genérica. Em seus cursos, baseados em textos hassídicos, Bonder trata, por exemplo, do conceito de alma: não é um corpo etéreo, mas o cordão umbilical entre a realidade (as circunstâncias) e a verdade (o que está além). "As pessoas têm um longing, uma saudade de alguma coisa que não sabem nem o que é, o que explica essa inquietação do nosso tempo."

No final das contas, ressalta o rabino, o importante é que para a tradição mística judaica a maior desgraça que pode acontecer a uma pessoa é o ocultamento do oculto. "Uma pessoa que vive no ocultamento do oculto é aquela que pensa: eu nasço, vivo e morro, tenho de aproveitar a vida da melhor maneira possível, e é isso aí."

DESCONSTRUINDO O REAL
A técnica mais comum da cabala é uma desconstrução metódica da realidade, explica Bonder. "Se eu puder desmontá-Ia em quatro planos - físico, emocional, mental e espiritual -, quando montar de novo, é como se essa realidade tivesse uma resolução melhor, fica muito mais nítido."

Mas a desconstrução pode ser irreversível, e o. mergulho no oculto, sem volta, admite o rabino. ''Você tem de ter alguma regra. Os rabinos diziam no passado que uma pessoa, para estudar a cabala, deveria ter 40 anos, pelo menos, e ser casada". Era a maneira que os antigos mestres dispunham em sua época para determinar que a pessoa teria uma certa maturidade, para não se deprimir.

Além de lastro, é preciso âncora. "Na tradição judaica, é muito importante ter um texto canonizado, porque aquilo é um território", diz Bonder. É a interpretação com foco em um alvo fixo que vai garantir a profundidade. "Eu posso começar a interpretar qualquer coisa como um louco. O louco é o maior interpretador que existe, mas sem um território. Por isso ele é louco.':

Uma das histórias fundadoras da cabala ilustra isso. Quatro sábios entram em um pomar (pardes, em hebraico, a mesma palavra para "paraíso").
Um deles morre, outro enlouquece, outro se torna herege e só um deles, o rabino Aquiva, sai de lá vivo para contar a história. O desmonte da palavra pardes ajuda a explicar o que pode ter acontecido com os pobres mestres. Ela é formada em hebraico por quatro letras, que representam os quatro mundos da interpretação: P de Pshat (interpretação literal), R de Remez (simbólica), D de Drash (metafórica), e S de Sod, que é o secreto - onde a cabala está contida -, uma interpretação' que aparentemente não tem pé nem cabeça, nenhuma conexão, nem mesmo metafórica. "É o que está por detrás das entrelinhas, é o oculto." .

Além da técnica das quatro interpretações, há na cabala a conexão de palavras por seu valor numérico, já que no hebraico há uma correlação entre letras e números. "Eu posso descobrir que tal palavra tem o valor 34, e achar uma outra que tem o mesmo valor, e que acrescenta significado. Eu tive de desmontá-la e transformá-la em número para achar outra palavra que se relaciona com ela."


Além dos quatro mundos do pardes e da, digamos, numerologia, a cabala emprega o Sefirot ("contagem de números", em hebraico, uma matemática do Universo, para a cabala), representada por dez atributos: clímax, sabedoria, entendimento, compaixão, severidade (ou rigor), beleza, vitória (ou permanência), reverberação (ou implicações), fundamento e materialidade. "É um template, um esquadro, que você aplica, decompõe o texto e vê as coisas nos múltiplos aspectos e inter-relações de uma trama que eu não enxergava antes."


CABALA DOS ARTISTAS
Tantas ponderações de Bonder não o levam a condenar a adesão à cabala por artistas. "As pessoas que estão no mundo artístico são muito intuitivas, vivem em busca de percepções refinadas", defende. Ele invoca um exemplo pessoal para explicar o que pensa. "Gostar de fazer surf é sempre identificado como algo de muita superficialidade, o surfista é o sujeito tolo, que não faz nada, que fica na praia. Mas na verdade é um lugar muito refinado, de contato com a natureza de fluidez das ondas, de entrar em harmonia com as coisas, de muita percepção."

Bonder admite, porém, que há um certo modismo na adesão de ricos e famosos à cabala, como a cantora Madonna, por exemplo. "A busca das pessoas é bonita, obviamente que pode ser manipulada, e essa manipulação tá aí rolando muito. Todo estudo profundo é em direção à felicidade e prosperidade, mas você pode criar com isso uma propaganda enganosa."


JUDA5, JESUS E ADÃO
Numa aplicação informal do jeito cabalístico de enxergar o mundo, Bonder comenta o polêmico Evangelho de Judas, divulgado recentemente, em que o apóstolo é apresentado como um colaborador de Jesus, e não um traidor. "Para o cristianismo é muito interessante o resgate desse apóstolo, que em algum momento ficou demonizado. Nenhuma teologia deveria perguntar quem matou, quem traiu. A preocupação do próprio Jesus é por que, não quem", diz Bonder. "Ele mesmo encara a tragédia e a paixão não como um episódio infeliz em que alguém o delatou e ele se deu mal, que é uma leitura muito rala do que aconteceu. Havia uma tensão espiritual na qual o sacrifício de Jesus fazia parte."

Ainda segundo o rabino, quando Deus procura por Adão depois que o primeiro casal come o fruto proibido, não está procurando culpados, mas querendo se aproximar. "Enquanto você ficar no quem traiu, quem comeu o que não devia, há alguma coisa errada."

Uma decorrência bastante palpável de toda essa reflexão é que entender o mundo superficialmente pode contribuir, e muito, para a sua destruição.
"Nós entendemos a vida assim, eu brigo com meu vizinho, entro em guerra com outro povo" vejo as coisas nesse enredo muito superficial, quero saber quem é culpado das minhas mazelas, quem é culpado das mazelas dos palestinos, dos israelenses." Além da superficialidade, para Bonder a insegurança explica esse modo de encarar a vida. "Ela legitima essa situação tão pobre espiritualmente, que é ter um inimigo. Quem tem inimigo encontra-se em um estado, espiritual muito baixo."

COMUNIDADE
Há pouco mais de 140 mil judeus no Brasil, concentrados em São Paulo, Rio, Porto Alegre e Recife. A CJB, fundada em 1989 e com cerca de 500 famílias afiliadas, assim como a comunidade Shalom, em São Paulo, são conhecidas por adotar posturas consideradas liberais, como permitir que homens e mulheres se sentem juntos na sinagoga e aceitar a ordenação de rabinas.