VÍCIO DA CIVILIZAÇÃO É TRANSFORMAR TUDO EM POSSE
Entrevista a Amanda Rossi, especial para Terra Magazine
Quinta, 21 de setembro de 2006, 07h59
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1148590-EI6581,00.html

SOBRE O LIVRO TER OU NÃO TER

No futuro, a sociedade terá como desafio aprender a lidar com o progresso e com o "não ter". A opinião é do rabino e escritor Nilton Bonder, que acaba de lançar o livro "Ter ou Não Ter, eis a questão". Para ele, deixar de ter é tão importante quanto possuir, pois o consumo, além de acumulação, é um dispêndio. Mas, pondera que o consumo não pode ser demonizado, é preciso antes compreendê-lo como uma necessidade humana.

Em seu livro, Bonder propõe uma administração do desejo e da vontade. O "ser" e o "ter" - duas dimensões que penetram uma na outra e que não existem isoladas - precisam ser balanceados para que um não se sobreponha ao outro. Isso só é possível com a preservação e redimensionamento do desejo - o que é desejável "ter" e o que é desejável "não ter" - pois é ele que mantém a vitalidade. Ou seja, somente com a junção das duas pontas, o que se possui e o que não se possui, é possível preservar o estímulo para novas conquistas e dar valor para as coisas da vida.

Abaixo, confira trechos da entrevista que Nilton Bonder concedeu a Terra Magazine por e-mail.


Qual é a proposta do seu novo livro?

É um livro espiritual sobre o consumo que não parte do pressuposto de condená-lo, mas de compreendê-lo como uma necessidade humana. A verdadeira posse está na conquista e não na propriedade. O livro aborda que as conquistas são feitas desta pergunta existencial sobre o que ter e o que não ter. Acumulamos pela vida afora as conquistas daquilo que brigamos para ter e que igualmente brigamos para "não ter". É um livro sobre administração pessoal do desejo e da vontade.


Em linhas gerais, quais são os valores que justificam a posse, o "ter"?

O consumo hoje está na base das questões de felicidade. Há um abuso na utilização do consumo visando à saciedade, mas acontece justamente o contrário - resulta sempre num vazio, no acentuar-se do que ainda não se tem. O "shopping" bem sucedido só pode acontecer se você busca também saber o que "não quer ter". No meu trabalho de aconselhamento estou sempre trazendo esse aspecto das coisas que as pessoas "tem" e que se pensarem bem, seu sonho de consumo seria "não ter". Se fizerem isso antes de "ter", evitando pagar os custos de ter algo que não queriam, é melhor. Mas se já temos, refletir sobre deixar de ter é um consumo tão importante quanto o de adquirir ou possuir. Consumir é um "dispêndio", não é só acumular. Temos que atacar as duas pontas do que vale a pena - ou seja o "ter" e o "não ter" para que as coisas nos tenham valor.

O desejo de ter conduz a sentimentos como avareza, egoísmo ou arrogância?

Talvez o vício mais vil de nossa civilização não sejam as drogas ou o álcool, mas o vício de querer se "ter". Por traz de propostas positivas tal como afirmar a nós mesmos ou ter auto-estima se esconde um abuso da experiência de "ser" através de "ter". E todas as coisas que buscamos "ter" são simbólicas do desejo de ter a nós mesmos, de nos possuirmos. Mas não nos possuímos através da detenção de algo e sim de conquistas. Essa forma viciada de "ter" certamente conduz ao egoísmo e outras variantes, mas seu efeito mais devastador é a insegurança e a incerteza de nossa identidade. Cheios de coisas, cheios de títulos, cheios de projetos e podemos não saber onde estamos. O ter que advém de necessidades e conquista nos reforça, o ter que nos faz autocentrados torna precária nossa experiência existencial.

É possível "ser" sem "ter"?

Não, o "ser" sempre terá uma medida de "ter". E se esse "ter" for em resposta a verdadeiras demandas da pessoa, a necessidades reais, ele se confunde com o "ter". Mas o "ter" desvinculado da questão "ter ou não ter" é uma perversidade de nossa cultura. Ela propõe o "ter" como uma medida de eficiência e sucesso. Precisamos de muita maturidade para não ser arrastados nessa percepção de que somos incluídos quando temos, excluídos quando não temos. Uma amiga comentava outro dia que só queria estar perto de pessoas que tinham tempo. Ter tempo é uma possibilidade somente a pessoas que não estão entulhando a sua vida de "ter". Uma das primeiras coisas que o "ter" consome é o tempo. Por isso saber o que "não ter" produz qualidade de vida. Se você pensar bem, ninguém quer estar perto do sujeito que não tem tempo, que não te escuta, que está em outro celular falando com alguém ao mesmo tempo. Essas são práticas da cultura do "ter" sem a questão de "ter ou não ter?". As melhores pessoas são as que têm tempo e as melhores coisas as que são gratuitas.

Como funciona a Economia do Desejo, de que o senhor fala em seu livro?

A identidade e o desejo estão intimamente ligados. Eu sou o que eu quero e o que eu quero determina quem eu sou. Se o querer se sobrepõe a esta identidade experimentamos uma crise de valores e nos sentimos vazios, desprovidos de um projeto. Se, ao contrário, a identidade se sobrepõe ao desejo nos sentimos reprimidos e deprimimos. Há uma economia, uma administração a ser realizada no que diz respeito aos impulsos e à pessoa. Se não cuidamos do querer ele se esvaece e fica sem paixão e sem alegria, mas se lhe damos demasiada autonomia ele também se dissipa. Basta lembrar dos brinquedos sonhados que quinze minutos depois estão largados ao desinteresse. O que nós gostamos é de querer, o grande querer é o próprio "querer" que nos mantém vivos e vitais. E como se preserva o querer? Tendo e não tendo. A medida de tensão entre esses dois pólos é que aprofunda e amplia o querer. O Cântico dos Cânticos, com seus bons três mil anos atesta isso. A paixão e o querer se apresentam no momento em que o amado "bate a porta". Não é o atender da porta que representa o clímax deste querer, mas a possibilidade de abri-la. Precipitar-se em abri-la, mesmo que sob o pretexto de "tê-lo", não favorece a verdadeira posse e o querer. Daí a frustração daqueles que acham que tomar para si dará conta da "posse". Essa é apenas a sensação de propriedade que não é sinônimo de posse e de conquista.

O senhor enxerga na sociedade atual algum exagero no ter ou esse apego à posse é natural?

A espiritualidade não é o oposto do materialismo. Não há espiritualidade sem a matéria. Não só porque vivemos da matéria, mas porque é ela que dá valor ao que é espiritual. Trancar-se numa caverna e meditar não é espiritual, mas lidar com a vida e com o mundano estabelecendo valores é o território da espiritualidade. Por isso a consciência de "não ter" -- de que o "não ter" é um querer e um atendimento a demandas pessoais tão importantes como o "ter" -- faz parte do que possuímos e conquistamos na vida. É fundamental entender que qualidade de vida não está atrelada ao consumo, a ter. Essa qualidade só pode ser estabelecida por alguém cujos valores lhe fazem "ter" e "não ter".
Há mestres que dizem que a qualidade de vida é medida justamente pela queda nessa qualidade se você perde coisas. Se ao perder coisas sua qualidade de vida despenca rapidamente, significa que não era qualidade de vida. A qualidade é justamente diferenciada da quantidade por uma medida de valor. Se você não tem valores não poderá conhecer a qualidade.

O mundo consegue sobreviver com o exagero do consumo? Ou o consumo pode levar à exaustão as capacidades produtivas do planeta?

O consumo que não é contido pelas coisas que "não queremos ter" inviabiliza o planeta e a vida. Um pássaro na mão só é melhor do que dois voando se você tiver uso para este pássaro, caso contrário, é melhor que estejam os dois voando. Reconhecer que não quero este pássaro é um ato de posse, não do pássaro, mas de si. Só quando desenvolvemos valores para mediar entre o que ter e o que não ter é que verdadeiramente experimentamos "ser". E quando nós somos, ocupamos apenas o lugar que nos cabe nesse planeta. A mesma patologia que destrói o planeta e seus recursos, as coisas que se pode ter, corrói a qualidade existencial de nossa geração. Da mesma forma que o "ter" equilibrado reforça e pode até se confundir com o "ser", o seu exagero depaupera a experiência de "ser". Por um lado, o planeta se exaure em recursos, e por lado, nós deprimimos e ficamos tristes ao tomar-lhe em excesso.

Um livro muito famoso na década de 1980, o ponto de mutação de Fritjof Capra, contesta os resquícios de uma visão mecanicista e materialista na sociedade atual, dizendo que ela não conduz à felicidade humana; ao contrário, é uma crise de percepção. Como o senhor analisa essa visão do "ter", que considera que a crença no progresso tecnológico e na evolução do consumo são maléficos?

Há uma relação entre o "saber" e o "ter". Isso porque o "saber" é uma forma de poder. Como disse o vício de nossa civilização é transformar todo o poder em coisas, em posse. O poder, e particularmente em sua forma de "saber", poderia estar sendo usado para restringir o consumo. Poderia estar produzindo uma maturidade que tivesse profundos interesses em "não ter". Nunca acho que o problema são as coisas, mas sim o uso das coisas. O progresso não é o nosso inimigo; nós é que somos o problema. Mas acredito que exista uma mudança acontecendo mesmo que ainda ofuscado pelo movimento pendular do consumo que se iniciou há dois séculos. Teremos pela frente que nos defrontar com o uso da sabedoria e do progresso para não ter. Esse desafio resgatará a fundamental questão.