JESUS É NASCIDO EM
CHANUKA
JORNAL DO BRASIL - CADERNO B ESPECIAL - 24/DEZ/1998
Jesus, para o Judaísmo, é um personagem
histórico, um judeu. Nasceu como tal, viveu como tal e morreu como
tal. Não um judeu comum, mas um líder espiritual e mártir
envolvido com a luta de sobrevivência de seu povo em meio à
invasão romana. Uma invasão que não lavava as mãos,
mas representava o poder vigente do conquistador. Jesus, que falava através
de sua tradição e pregava o uso radical da solidariedade,
falava ao fraco, ao órfão, à viúva e ao estrangeiro
_ preocupação fundadora dos Salmos judeus.
Se o descrito acima é verdade, como explicar a relação
de Jesus e o Judaísmo como uma das maiores questões mal
resolvidas da civilização ocidental? Como é possível
que Jesus seja o ``divisor de águas'' entre o que é compreendido
como judeu e não-judeu entre as tradições bíblicas?
Para isso teríamos que analisar não tanto a religião,
mas a história e a política. Gostaria mesmo é de
me aprofundar nas similaridades e não nas distinções
dos mitos judaico-cristãos.
É inverno e as noites são as mais longas do ano. É
frio e a lua é nova. As trevas tomam conta do Hemisfério
Norte. Um antigo ritual de celebrar as luzes em meio à escuridão
fala da esperança, conhecida da experiência humana, de que
as longas noites darão lugar a noites mais curtas. O inverno cederá
à primavera e à luz, escassa no ápice do inverno,
terá sua semente plantada justamente nesse breu. A noite seguinte
ao solstício de inverno, a mais longa de todas as noites, graças
a D`us, será menor.
Essa celebração antiga, de tempos imemoriais da civilização
agrícola, havia ganho uma dimensão histórica para
a nação judaica. Pouco mais de dois séculos antes
de Jesus, sob a invasão militar e cultural helênica, um levante
marcaria profundamente o imaginário da nação. Sob
sanções que lhes impediam de preservar sua tradição
além de sua autonomia política, um grupo liderado pela família
dos Hasmoneus levantou-se contra o poderoso exército grego. Numa
luta de escaramuças e subversão conseguiram o impossível
_ não só venceriam, restaurando uma dinastia judaica, mas
reconquistariam seu símbolo de unidade nacional _ a cidade de Jerusalém
e o Templo sagrado. No Templo conspurcado pela intervenção
invasora não havia mais óleo para acender a chama eterna
que simbolizava o funcionamento da vida espiritual do povo. Eis que um
último recipiente com óleo sagrado ainda estava lacrado.
Seu conteúdo não supriria mais do que poucas horas. No entanto,
a luz permaneceu acesa por oito dias.
Esta é a festa de Chanuká, a festa das luzes, para a tradição
judaica, que ocorre no período do Natal. Ela comemora a certeza
de que quando se pensa que não há mais como manter a chama
acesa, se descobre o necessário para durar para além do
tempo. O número oito (oito dias) é simbólico da transcendência
do tempo. Para os judeus, a unidade principal de tempo _ a semana _ desmarcava
que ao final do sétimo dia se seguisse o primeiro (domingo) e não
o oitavo dia. O oitavo dia é o dia após o tempo. O candelabro
ardendo por oito dias é símbolo do que não se apagará
jamais.
Os judeus passaram então a celebrar o acendimento de velas por
oito dias, acrescentando uma a cada dia durante a festa de Chanuka. Essa
era a sua maneira de vencer as trevas _ lembrar do ciclo que resgata as
luzes. Ao olhar as velas, os judeus passam de geração em
geração uma certeza de valor espiritual profunda _ D'us
te ama.
A luz é esta presença que está até na mais
escura das noites. A ``noite'' passou a ser simbólica do exílio.
O escuro é um lugar que fica a caminho da luz. Para
chegar à alvorada é necessário viver-se a madrugada.
E todo aquele que sensibiliza seus olhos na escuridão começa
a enxergar. As luzes que vencerão a invasão, o exílio
do passado, venceriam também a invasão do presente.
Jesus é nascido em Chanuka. Seu mito é o mito das luzes
em meio à escuridão. É a luz que acolhe o fraco em
meio à escuridão do poder e da opressão. Na dimensão
individual representa a restauração do templo, da vida,
em nossas almas. Quantas vezes estamos descaídos sem energia vital,
sem direção e descobrimos em nós o ``óleo
lacrado'' para dar continuidade à luz? A surpresa dessa descoberta
é a famosa ``conversão'' de que muitas tradições
cristãs falam e o judaísmo através da ``teshuvá''
_ o retorno ao caminho.
Não é por acaso que os judeus acendem luzes em seu candelabro
de oito braços. O candelabro é representativo da ``árvore
da vida'', com seus troncos abertos aos céus. Luzes em árvores.
Árvores que estão nuas no inverno mas nas quais percebemos
em meio a seu cinza a luz vibrante da vida. Reinaugurar a vida e manter
a chama acesa são as mensagens de Chanuka e do Natal, do nascimento
daquele que é luz para a tradição cristã.
E por que os judeus não celebram a luz de Jesus? Porque a linguagem
e o imaginário judaico não passam pela forma humana. Abraão,
Moisés e David são sempre apresentados em seu aspecto humano.
Essa foi uma fusão com a linguagem romana que aconteceria mais
de dois séculos depois do tempo de Jesus. Para os judeus a ``luz''
é filha de D'us e é assim que ele está em todos nós.
A ``luz'' vem do estudo, da inspiração e da ação
junto aos outros.
Jesus guarda um grande segredo para judeus e cristãos. Para os
judeus ele não é nada mais do que eles mesmos. Se presente
entre nós, poderia assumir o culto de uma sinagoga e liderar na
leitura da Torá. Para os cristãos, ele que é ``filho
de D'us'', o mais próximo de todos, é o ``outro'' _ um judeu.
Um dia, tal como Jacób e Esaú fizeram, ao reencontrarem-se
judeus e cristãos vão dizer a mesma coisa: Eis que olhar
a tua face é como olhar a face de D'us. Ou talvez: Tu que eras
o outro, nada mais és do que eu. Neste reencontro está o
sonho de um mundo melhor. Onde a luz é transcender a escuridão
da diferença. No entanto, não é nunca livrar-se dela.
Pois a luz que dá esperança vem do meio do breu. Não
é luz apenas, mas a luz que nos faz ver luz.
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